segunda-feira, 4 de abril de 2011

Comboio errado, destino errado, bilhete errado

Fotografia de Ricardo Lopes
Esta história é real, vocês vão achar que é ficção, que é azar a mais para um só corpinho (e pequeno ainda por cima!), mas é verdade e tem testemunhas.

Este fim-de-semana recebi a primeira das muitas remessas de amigos que irão pisar solo italiano. E o bem que soube? Conversa, risota, cusquices, palhaçada. Tudo natural, sem contexto ou reflexão antes de abrir a boca. Podemos dar a volta ao mundo mas as nossas pessoas serão sempre as nossas pessoas e o resto é história. Bem, mas não é disto que vos venho falar que quanto mais a minha veia lamechas estiver longe deste blogue, melhor para a sua saudinha.

Sábado ao final da tarde, acabados de ver Roma, faltava ainda duas horas para o comboio que nos levaria até Florença partir. Abancámos num café na estação de comboios Termini e tivemos tempo para fazer de tudo um pouco. Ver lojas, consultar o email e o Facebook, analisar todas as fotos da viagem, beber café… A cada cinco minutos suspirávamos pelo banquinho que nos ia aliviar a dor de pernas depois de dois dias a andar.

Quando finalmente entrámos no comboio, malcheiroso ainda por cima, armámo-nos em rebeldes e refastelámo-nos na primeira classe, cientes que não ia levar 10 minutos a levantarmos o rabo dos assentos. E não levou mesmo. Tinha a corneta acabado de apitar quando nos apercebemos que Florença não era uma feliz contemplada no rol de cidades para onde a maquineta iria.

Tudo o que aconteceu desde aí, ficará para sempre na minha memória. Entre o pânico, as gargalhadas de nervosismo, o andar para trás e para a frente no corredor a suplicar por uma alminha que nos iluminasse, ficámos a saber que o nosso comboio para Florença tinha saído, há cerca de três minutos, não da estação de Termini mas de outra (que agora não me lembro o nome), em Roma.

Pronto, estava tudo perdido. O dinheiro dos bilhetes, das dormidas, o banquinho onde já tínhamos planeado o sono dos justos. Tudo porque não nos dignámos a olhar para a folhinha A4 e confirmar se estávamos no sítio certo.

A única esperança foi que o Intercidades para o qual tínhamos bilhetes estivesse atrasado, como por sorte o comboio onde estávamos ia parar na tal estação de Roma talvez ainda conseguíssemos. E assim foi. Mesmo já com dez minutos de atraso, encontrámos forças ainda não sei onde e corremos como se não houvesse amanhã.

Galgámos degraus, subimos escadas rolantes, procurámos o nome Florença em dois binários errados até que ouvimos uma voz misturada com o som da corneta: “Bora pessoal, o comboio atrasou, é aqui!” Um dos rapazes tinha-se agarrado à porta para ela não fechar e as meninas, que entretanto tinham pedido encarecidamente às suas pernas para não deixarem de andar, lá entraram uma a uma.

Uma alegria, uma festarola. “Ai que foi o nosso Euromilhões, ai que sorte que tivemos, ai que nem acredito que estamos cá dentro, ai, ai, ai, ai… ai que os nossos lugares estão todos ocupados por pessoas”. Pessoas que cheiravam a chulé, vinho, suor. Pessoas que não se lavavam há dias. Ganhámos coragem e começámos o diálogo: “Olá, pode ver se por acaso não está no lugar errado?”

Não, não estavam. Tinham no seu bilhete exactamente os mesmos números que nós. Quase que desfalecemos, era informação a mais para um só dia. Revoltados com a incompetência dos italianos no geral e das máquinas da Trenitalia em particular, lá fomos indignados chamar o senhor pica (que não era poliglota como os portugueses, só falava Italiano).

Porca maiala dizia ele sem perceber como tinham sido emitidos dois bilhetes para o mesmo banco. Até que descobriu a pólvora: “Então mas os vossos bilhetes são para dia 2 de Fevereiro, há exactamente dois meses atrás, não podem estar aqui ou terão de pagar um novo”. Vimos os olhos a brilhar de todas as pessoas na cabine com quem tínhamos armado escarcel mas ninguém teve forças sequer para ficar incomodado.

Passada a fase da negação, em que dissemos ao pica que não podia ser, que era impossível, que tínhamos confirmado tudo por tintim por tintim, passámos à da vitimização. “Por favor, não nos faça pagar 45 euros por cada bilhete, nós somos estudantes, nunca usámos o bilhete em Fevereiro, por isso, que mal faz deixar-nos viajar em Abril?”

Ele, de porte rígido, gélido e inflexível, nunca dos respondeu até dizer um tímido: “Venham comigo!” Pronto, estamos feitos, é agora, vamos ficar numa terra onde Judas perdeu as botas e dormir na rua ao relento e, quem sabe, morrer congelados, pensámos. Mas não. O senhor pica que era italiano mas nem parecia tal era a simpatia, mandou-nos a todos para dentro de um vagão vazio que cheirava bem e disse para nos deixarmos estar ali.

E assim fomos a viagem inteira. Caladinhos que nem ratos, a perguntar vezes sem conta uns aos outros se aquilo nos tinha acabado de acontecer. Parecia mentira, mas tinha mesmo.

2 comentários:

  1. E ainda falta a parte de chegados a Florença, chatear o pica outra vez para nos dar mais alguma informações sobre transportes, horários e tal...!

    O fofito portou-se muito bem na parte da vitimização, ufa!Obrigado Ricardo!


    Pela divertida e amiga companhia que tanto destoa dos donos da casa, Muito obrigado!


    Ruben

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